No lugar do coração, uma fartura

Sou miserável. Por natureza, um miserável incorrigível, mas não invejo os cães. Desconhecemos as suas dívidas ao banco e, andar de coleira não deve ser, de todo, agradável. Descobrir aos trinta a verdadeira vocação é, no mínimo, deprimente. Quando essa vocação passa por ser vendedor de farturas, pior ainda. É simples,
Não vai valer de nada ter uma pirâmide, bem razoável, feita de garrafas de óleo fula. Nem pacotes corpulentos de farinha branca de neve, de costas para o espelho. Não tenho perímetro necessário na zona abdominal, nem bocadinhos de terra na unhas, nem o sebo, nem o tufo de pêlo que sai, maroto, fora da camisa que está aberta até ao botão da calça de ganga coçada. Nem sequer gaja, porra. Uma Maria, de braço descoberto, a manobrar com agilidade uma pinça que não deixa a fartura fazer dói-dói. O nome Antunes, rei da fartura, bem no cimo, com luzinhas que piscam, quiçá algumas estrelas e uma Nicole de biquíni. Em períodos fracos da feira, caminhar despreocupado até à barraquinha do José e comprar uma olaria ou um chapéu de palha, caso alguma chuva  fraca, acontece sempre. Se tivesse netos, um daqueles cavalinhos com cabelo de corda e sorriso congelado. Ao final da tarde, sardinha com broa de Avintes e um copo de verde, ah, o vinho verde com aquele gás pequenino que faz uma comichão subtil no fim da garganta. Para acabar, duas ou três trincas no churro que ficou do meio-dia. Dar uma volta na roda gigante e conhecer uma Carolina que fecha os olhos, mesmo quando a cadeirinha ainda está perto do chão, terra batida cheia de bisgas e papel rasgado do sorteio da grande tômbola. Perguntar se a Carolina tem medo de fantasmas. Ter paciência e, nessa altura, rezar um bocadinho para que diga que sim. Senão, atirar bolas de ténis a umas latas que estão quietas. Esperar ganhar um edredão muito fofo.

Porta-te bem, senão levas uma surra

Há um ciclone, que anda para aí todo desvairado, com o nome de Flávio. Flávio, pá, a gente é a última vez que te avisa: vê lá se fazes um bocado mais de remo no ginásio, ou isso, pá. A tua prima Katarina, que assaltava velhinhos em paragens de autocarros, é hoje uma boa catequista. Por isso.