Tia Georgina, tenho pena que já não estejas cá. Tu foste a responsável pelos Natais mais felizes da minha vida. Tia Georgina, Tia Georgina. O nome de madrinha ficava-te tão bem. Em pequeno, lembro-me que não conseguia dizê-lo direito. Dizia: Georiegeina, e deitava sempre um cuspo nojento por causa dos gês e do erre do teu bonito nome. Tu sempre foste compreensível e deixavas-me tratar-te por Gina. Nunca soubeste, mas nesses dias de véspera de Natal, quando ias lá a casa levar-me a prenda, a minha mãe enchia-me de pancada porque eu não era capaz de dizer o teu nome como deve ser. Tinha sido tão mais fácil ter-te tratado por madrinha. Aliás, tinha sido o mais lógico, já que eras, efectivamente, a minha madrinha. Oh! Madrinha! Ao longo da minha vida só escrevi uma carta, e não foi a um morto mas, por favor, tenta compreender, ainda dói um bocadinho. Oh! Tia Georgina, lembras-te? Feijãozinho, era assim que tu me chamavas. Dizias daquela forma engraçada: miu fêjunzinhô, devia ser por estares em França, há muitos anos, com o Tio Adélio. Vou confessar-te uma coisa Tia Georgina, eu acho que a minha mãe sempre teve inveja de ti. Quando tu davas aqueles pus à frente de toda a gente, sem nunca te atrapalhares, a minha mãe tinha inveja porque mesmo nessas alturas tu sabias manter a classe, Tia Georgina. Nunca mandavas as culpas para os outros e isso era categoria. Uma vez o Tio Adélio quis encobrir-te e dizer que tinha sido ele a dar o pu porque estava a jantar em vossa casa um tipo importante que era um padeiro de Valongo, mas tu não deixaste. Começaram a dizer muitos palavrões, alguns que eu nunca tinha ouvido. Eu estava em tua casa porque a minha mãe, na sua idiotice, tinha rachado a cabeça a limpar o polibã, lembraste? Mas, adiante, o Tio Adélio continuava a dizer que tinha sido ele e tu não desistias e dizias: “Cala-te Adélio, que tu nem um ovo sabes estrelar, quanto mais dar um peido.” Eras muito mais inteligente do que ele e foi por isso que ele depois te bateu em frente ao padeiro e eu encontrei-te mais tarde na cozinha à procura do pacote de gelatina. Cá entre nós, Tia Georgina, agora podes confessar que o que tu procuravas mesmo era um venenosinho assim, para ratos, ou isso. Enfim, coisas da vida, afinal acabaste por ir tu na frente, Tia Georgina. Tinhas uns chinelos cor-de-rosa com pompons muito fofinhos que deste à filha da porteira quando os teus joanetes já não te permitiam usá-los. E dançavas rock n´roll, Tia Georgina. Porra, tu eras um animal possante, um jacaré provavelmente. Uma coisa que não percebia era como é que vocês, tu e o Tio Adélio, faziam tanta pasta a fazer cacetes. Que burro que eu era. Vocês eram praticamente donos de metade das padarias em Toulouse! Meu Deus, que sonho. Trazias-me sempre as melhores prendas. Como é que poderei esquecer o dia em que me trouxeste a consola Nintendo com aquele imbecil do Super Mário? Tu trazias uma caixa dentro de outra caixa, dentro de outra e com muitos jornais, para que o tempo de descobrir a verdadeira prenda fosse demorado. Isso era tão bonito, Tia Georgina, essa tua atitude. A minha ansiedade atingia valores muito altos, mas valia a pena. Antes de te ires embora, costumavas-me dar um beijo na bochecha, e eu não dormia a noite toda com a marca do teu batom que tinha um cheiro terrível a mofo. Mas não podia limpar, claro não. Se eu limpasse a cara sentia que te estava a trair, de qualquer maneira. Acho que isto mostra um bocado o bom rapaz que eu era na altura. É triste pensar no meu Natal sem ti. Para o caso de conseguires ler isto, ficas a saber que a minha mãe continua a dar-me pares de meias ao xadrez todos os anos e o meu pai diz-me que põe dinheiro numa conta (é mentira) de certificados de aforro no correio. Mereces mais do que isto, mereces mais do que um simples post, num mísero blog na internet. Eu acho que tu não mereces ter morrido. Nota: A Tia Georgina morreu afogada numa praia perto da Póvoa de Varzim. O meu Tio Adélio ainda é vivo, casou-se segunda vez com uma gaja que não aparece muito.
Sobre a minha consoada. Talvez seja pouco relevante dizer que houve os habituais excessos alimentares e as suas previsíveis consequências. Passo então à fase seguinte. O meu primo puto recebeu um kit de karaoke foleiro, o que fez com que acabassem todos a cantar hits do Bryan Adams. Que bonito. A minha avó a abanar o pézinho e a minha mãe, com um jeito estupidamente desajeitado, a fazer qualquer coisa que se assemelhava a uma dança tribal. As pessoas deviam ser proibidas de dançar quando chegam aos trinta e cinco. Sinceramente. O meu Tio Fino não cantava, o parvo. Tinha aquela atitude superior e chegou mesmo a dizer, com ar de gozo: "Isto do karaoke é uma coisa um bocadinho primária, não é?". Idiota. Talvez tenha sido nesse momento, de puro convívio, que senti toda a complexidade do meu agredado familiar e restantes. Éramos vagamente desprezíveis. Para atenuar, fui ao congelador e tirei um bocado de carne que descongelei no micro-ondas. Estava mesmo a apetecer-me um bife no pão, antes de me deitar.