Dali do fundo, um barbeiro

A minha relação com a Tina está, literalmente, por um fio. A Tina está obcecada com a sua saúde oral (entenda-se, espaços entre os dentes) e utiliza o dito fio dental sempre que dá uma trinca num húngaro ou numa outra bolacha de pequeno porte. Traz aquilo na carteira junto do pacote de conguitos que costuma comprar depois do almoço no quiosque da Ermelinda. Acho bem que as pessoas lavem os dentes, e até os pés, eventualmente. Às vezes penso na Tina a passear pelo jardim de São Lázaro, como se fosse um cachorrinho, língua de fora e tudo. Coleira invisível, feita de fio dental. Desculpem. Esta imagem é fraquinha. Vou tentar outra vez. A Tina, a obrar bem o fio, de trás para a frente, de trás para a frente. A obrar tão bem que consegue fazer aquilo a que chamamos de buraco entre os dois dentes da frente, um buraco bem razoável, assim estilo moeda de um cêntimo. É claro que essa condição faz com que desenvolva uma extraordinária capacidade para a criação de uma vasta panóplia de sons, assobios e deitadelas de cuspo cá para fora, eventualmente até um número numa companhia de circo romeno, caso tenha sorte ou um padrinho com a mania que é espertalhão.
Eu estou no carro, sentado no banco ao lado da Tina. A Tina gosta de ouvir o oceano pacífico, o programa de rádio, claro. Mas não foi por isso que me exaltei um pouco. Foi por causa do fio. Porque nessa noite o fio tinha acabado e a Tina obrigou-me a acompanhá-la até uma farmácia. Até aqui tudo bem, se não encontrasse o Arnaldo a comprar preservativos. O Arnaldo é o irmão mais novo de um maluco que eu conheci no parque de campismo de Olhão. Tem catorze anos e pertence a um grupo de pessoas que se preocupam, de forma considerável, com a vida do urso polar, em geral. Trazia um gorro bem enfiado, era difícil ver-lhe os olhos, ainda assim, arrisquei uma palmada nas costas:
“Arnaldo.”
Ele franze e coça a zona lateral da narina esquerda.
“António! Também queres disto?”
“Não. A Tina veio comprar fio dental.”
“A Tina?”
“Uma amiga.”
Enquanto o Arnaldo olha para dentro da farmácia, eu tento, disfarçadamente, descobrir a moribunda que quer brincar aos polícias e ladrões com o Arnaldo, “o defensor da vida do urso polar”, e encontro, dentro de um smart amarelado, duas mãos que seguram qualquer coisa com um folheto promocional relativo à semana de enchidos do continente. De forma trágica, esse mesmo folheto, escondia, por assim dizer, o focinho daquela que só podia ser a sua ursa.
“Uma amiga, pois, pois."
“Vais bem munido?”
O Arnaldo dá uma gargalha nervosa.
"Tinha poucos trocos."
"Ai, o malandro."
Depois de um silêncio curto, o Arnaldo atreve-se o suficiente, sendo assim capaz de proporcionar na parte interior das minhas veias uma longa, silênciosa e interna gargalhada:
“Vem dali um barbeiro do caralh..”
“Barbeiro?”
“Nunca ouviste?”
“Vem dali um barbeiro, quer dizer, vem dali um frio.”
“Ah.”
“Percebeste?”
“Frio de cortar à faca?”
“Sim, daí o barbeiro.”

Quero conhecer esse génio. Ser amigo desse génio, eventualmente envolver-me em torneios de malha, com esse génio notável. O génio que disse: "Vem dali um barbeiro do caralh..". God damn it!

Depois, como isso do barbeiro era mesmo verdade, apesar de não o ter conseguido ver na realidade, talvez mais ao fundo da rua, não sei, entrei no carro e rodei a chave. O próximo gesto foi o de desligar o rádio. Ouvia-se um rolo de carne meio choramingas, dizia numa língua diferente: “oh, eu farei qualquer por amor, oh eu farei qualquer coisa por amor, oh eu farei qualquer coisa por amor, mas não farei isso.”

Olho de chimpanzé

Conta-se que a minha tia-avó, no dia do casamento, para além de estar a sofrer dos pés, quiçá uma unha encravada ou um joanete na fase do armário (não há provas), estava, e em relação a isso existem registos fotográficos que o comprovam, estava, definitivamente sendo alvo ou, melhor dizendo, sendo portadora, assim é que é, sendo portadora de um considerável e proeminente treçolho. Até bem recentemente acreditei que o treçolho não figurasse naquela lista de coisas terríveis que nos podem ser herdadas por uma tia-avó. Estava redondamente enganado. Hoje, carrego um treçolho bem adolescente no olho direito. Não é, de todo, desagradável, apesar de me retirar quase total visibilidade e, de vez em quando, largar um pus idêntico ao mel, só que menos doce (já provei). Parece assim, é como se tivesse um chimpanzé nas costas, só que no olho. Querendo ser optimista.. não, não consigo.

Supermercado das alcatifas

Um supermercado das alcatifas é um sítio espectacular. Ontem passei parte da minha tarde com a minha irmã num supermercado das alcatifas. Posso garantir que não me divertia tanto desde que vi a minha tia tropeçar num pacote de arroz carolino no hipermercado jumbo. Convém dizer que eu odeio tapetes. Aliás, abomino tapetes. Sou invulgarmente alérgico a tapetes. Acho que os tapetes são uma coisa feia, em alguns casos, até mesmo, horripilante. Então aqueles tapetes que têm a grossura de uma estante de madeira com para aí vinte cinco centímetros, daquelas que para além de uma boa porrada de livros podem também carregar com relativa facilidade algumas crianças obesas, esses tapetes assustam-me muito. Juro de pés juntos que tenho medo desses tapetes. No supermercado das alcatifas vi um tapete desses que olhou para mim e viu que eu não gostava dele, nem um bocadinho. Estava em saldo, o miserável. É bem feito, não fosses tão feio. O palerma tinha a cor de um bege assim para o caidito e uma coisa parecida com uns desenhos chalados, como se estivessem em coma ou fossem só apenas indivíduos muito tímidos. Mas não eram indivíduos no verdadeiro sentido do termo, eram mais uns riscos, acho eu. O mais sensato era afastar-me de ali, foi quando fui dar com a minha irmã sentada num desses pufs de cor eléctrica. Sentei-me ao lado, num desses pufs igualmente de cor eléctrica e pensei um pouco no tapete em si mesmo e como o tapete era, em si mesmo, algo de profundamente detestável. Eram tantos à minha frente que comecei a ficar tonto, um bocadinho enjoado, a imaginar que estava debaixo daqueles tapetes todos e alguns eram mesmo tapetões grandes e com pelo comprido. Alguns eram mesmo bichos brancos grandes, tipo ursos polares ou isso. É provável que tenha esbranquiçado um pouquinho porque a minha irmã foi prontamente buscar-me um copo de água. Um bocado de sorte, lá existia um daqueles garrafões de água gigantes ao contrário, como há nas salas de espera dos dentistas. A minha irmã sabe, desde sempre, que sou um tipo extremamente estranho, ainda assim não me faz muitas perguntas, o que faz dela uma pessoa com uma inteligência emocional muito acima da média. Talvez por isso, voltámos aos pufs, como se nada tivesse passado. A minha irmã pergunta o preço do puf porque até à data era o mais confortável que tinha conhecido, a tipa da loja diz que o puf custa cem euros e a minha irmã pergunta se não há desconto, mas a tipa diz que não, que aquele é um produto que se bende benhe tuôdo o áno. É pena.

O confessionário

A parte mais interessante do meu Natal aconteceu por volta das duas da manhã do dia 24 quando o tio fino reclama a minha companhia para ir comprar cigarros. A opinião geral lá em casa era de que não havia nada aberto aquela hora. Foi aí que eu tive de explicar que existem bombas de gasolina onde tipos, provavelmente tão energéticos e bem cheirosos como eu, vendem cigarros a atrasados mentais como o meu tio fino. O tio fino é viciado em cigarros desde os oito anos. A mãe foi dar com ele a meio de uma chuveirada com um cigarro aceso (português suave, o tio confessou mais tarde) pousado numa saboneteira pintada com o pé por um artista bastante dotado e sem mão. Adiante, metemo-nos no carro do tio fino, um peugeout 206 cor verde para o cáca e o tipo liga o rádio e está a dar qualquer coisa parecida com uma ópera. Eu pergunto ao tio fino se ele fazia questão de ouvir aquela tipa gorda, ele responde: sabes lá tu se ela é gorda, eu: costumam ser, ele: ai é? eu: não é? ele: sabes muito, sabes. Calei-me logo, até porque entretanto pareceu-me ver o pai natal ali perto da churrasqueira carvão II. Mas não devia ser porque quando olhei de novo, aquilo era só uma árvore. O tio fino começa então a fazer-me perguntas bizarras acerca da minha vida onde se incluíam patetices evidentes como: como é trabalhar num restaurante na periferia da cidade e se o Víctor Baía enchia sempre o depósito quando punha gasolina. Tentei não levar as questões muito a peito e respondi de forma educada. O tio fino ficou desapontado, provavelmente porque estava à espera que eu lhe dissesse que eu era um mártir tipo santinha alexandrina de balasar. Continuando, ele compra os cigarros e traz na mão um pack de cerveja. Pousa o carro ali perto da alfândega e sai do carro: desculpa lá, estava a precisar de libertar uns gases. Deprimente, penso. Diz: já viste o rio hoje? A minha única hipótese de sobrevivência era aquela garrafa de cerveja (cristal). Confiro com a mão, está fresca. Saco do canivete suíço e bato a porta do carro: o que é que tem? ele: Porra! Já estás a beber seu animal? É parvo, digo: era para guardar? O tio fino dá uma gargalhada: tu és um gajo esperto, meu burro. Lembrei-me da gata bílis, não sei porque carga de água e, pouco depois, relembrei os azulejos miseráveis da minha casa de banho. O tio fino estava entretido a cantarolar qualquer coisa como um fado de Coimbra e eu achei por bem deixá-lo estar. Foi aí que senti qualquer coisa muito perto da melancolia e, para contrariar, disse ao tio fino que já tinha pensado em ir para padre. O tio fino não acreditou. Eu disse que sempre gostei de saber basicamente tudo sobre a vida das pessoas, católicas e não só. O confessionário era também um sítio fixe para me esconder do meu primo quando brincássemos às escondidas. Logo a seguir, o tio começou a contar como tinha sido a primeira vez que tinha andado na roda gigante. As dúvidas relativas à minha potencial vocação dissiparam-se um pouco mais quando olhei para o relógio e vi que eram três e meia da manhã. Tinha dito apenas duas palavras. Foi bom. Gosto de ser o poço onde os outros deixam, muito ao de levezinho, cair os seus puzetes mentais.