Se tivesse dinheiro comprava um aparelho auditivo para a minha irmã. A minha irmã não é surda, mas para lá caminha. Para lá corre, melhor falando. O meu cunhado era um homem portador de uma audição razoável até meados do Inverno passado, altura quando começou, também ele, a sofrer do mesmo mal. Casaram-se há dois ou três anos, sob o olhar desconfiado de um padre caquéctico e uma plateia visivelmente impaciente. Passaram a noite de núpcias a escassos quilómetros de casa, simpática residencial central, propriedade da prima da madrinha do noivo e, no dia seguinte, banharam-se pateticamente numa cachoeira algures nos Açores. Horas antes, a minha irmã tinha sido mandada parar no aeroporto por carregar três latas de chispalhada no nécessaire. Quando a autoridade pergunta, Chispalhada? A minha irmã responde prontamente, Sim, chispalhada. Segundo o relato da minha irmã, a autoridade não gostou da sua resposta e continuou assim, Vai levar três latas de chispalhada para os Açores? Sim, vou levar três latas de chispalhada para os Açores, disse a minha irmã, A menos que o senhor me impeça. O telemóvel da autoridade tocou ao som do thriller de Michael Jackson, ele atendeu dizendo isto, Então Maria? Qual foi a desculpa? A Maria lá disse qualquer coisa e depois a autoridade falou, Eu logo vi, não o deixes sair que eu vou já para casa. Desligou e disse ao meu cunhado empenhando a lata de chispalhada como se tratasse de um troféu, Diga-me uma coisa, tem a certeza que quer levar isto consigo? O meu cunhado terá dito, Sim, essas latas de chispalhada são minhas, gosto muito de comer chispalhada senhor agente. A autoridade terá sorrido cinicamente e a minha irmã colocado novamente as três latas de chispalhada no nécessaire.
To be continued...
Chispalhada
Neste domingo estarei com uma intoxicação alimentar
Neste domingo estarei com uma intoxicação alimentar graças ao ovo da páscoa oferecido pela dona Adelina do segundo andar. Antes disso, pela hora do almoço, comerei cabrito, como é habitual nestes dias e enfrascar-me-ei com duas ou três garrafas de tinto. Não comerei sobremesa, contentar-me-ei com o insípido café de saco e, minutos depois, proporcionarei ao meu cão um agradável passeio que o fará exercitar as patas e defecar um pouco.
Não pensarei em nada, aliás como é meu costume, nem farei esforços por trocar simpáticas palavras com os vizinhos. Quando voltar a casa, entrarei no quarto da minha mãe avisando que o cão tivera defecado menos do que o habitual, ao que a minha mãe responderá que aquilo é apenas uma fase em que o bicho anda mais preso. Passarei então até à sala onde encontrarei o meu pai a jogar cartas com o meu tio fino. Serei convidado a jogar, mas tal não realizar-se-á, o crapô é um jogo disputado por dois jogadores, direi eu. O meu pai dirá, este meu filho devia ser cientista e depois, juntamente com o tio fino, soltará uma breve gargalhada. Nesta altura, estarei extremamente entediado e pensarei sobre as possibilidades que aquele dia poderá encerrar. Chegarei à conclusão de que não poderei esperar por nada de excitante. É nesta atura que,
Me sento à janela. A minha mãe toca-me no ombro com um sorriso de domingo. Tem na mão um objecto com forma de ovo embrulhado num papel que não sei definir, diz-me, foi a dona Adelina que deixou para ti. Começo a despir aquilo que me parece ser um ovo e, no papel que não sei definir estão as minhas tardes na casa da dona Adelina, eu pequeno, a dona Adelina uma espécie de ATL. No caderno de duas linhas, a escavadora borracha porque, o menino não pode sair por fora. Bolacha Maria esmigalhada com sumo de laranja e banana, lá fora, leite achocolatado, pães com manteiga, bolos, santa ignorância, meses, anos, hoje temos um docinho para o lanche, lá fora guloseimas, hoje temos um doce para o lanche, Bolacha Maria esmigalhada com sumo de laranja e banana. Pouco antes da minha mãe chegar, era certo, os dedos da dona Adelina penteavam o meu cabelo. É só por isso que a perdoo. Só por isso. Como se a velha fosse um monstro, como se no momento em que penteava o meu cabelo com as suas mãos, a dona Adelina fosse uma anjo.
Seguro um ovo de chocolate, foi a dona Adelina do segundo andar que mo deu. Sento-me em frente à televisão e estaciono no Biography Channel. Fala-se sobre a depressão pós-parto da Brooke Shields. Começo a comer o ovo que a dona Adelina me deu e penso que a dona Adelina, caso tivesse tido filhos, não deveria ter sofrido desse mal, pobre dona Adelina, três gatos e um peixe. Quando acabo de comer o ovo de chocolate é altura de ir até à cozinha beber meia caneca de água. Pelas duas e trinta e cinco da manhã começo a sentir os primeiros sintomas.
Pinheirinho
A Belinha pousou os cotovelos na mesa e fez aquilo a que os mais sensatos chamam de sorriso amarelo. A culpa tinha sido dela. Imprudente Belinha, foi ela que contou à mãe. Era uma tarde de chuva e Belinha e sua mãe punham o bacalhau de molho. De entre outros assuntos, podiam ter falado, precisamente, sobre o facto dos dias chuvosos serem dias propícios para pôr o bacalhau de molho na marquise, menos luz, temperaturas mais baixas, menos risco de cheiros e água choca. Mas não. Belinha preferiu chamar o Zé.
O Zé consegue tocar com a língua na ponta do nariz.
Ai é?
A mãe de Belinha deitou a língua para fora. A língua da mãe da Belinha tinha pouca ou nenhuma elasticidade.
Eu não chego. Tu chegas?
Belinha deitou a língua para fora. A língua da Belinha tinha mais elasticidade do que a de sua mãe. Belinha não conseguia chegar com a língua à ponta do nariz por um ou dois milímetros.
Estás a ver? Quase que chego.
Depois de porem o bacalhau de molho, Belinha e sua mãe tentaram várias vezes, em frente ao espelho, chegarem com a língua à ponta do nariz. Não tiveram sucesso.
No dia em que o Zé foi lá jantar, a mãe de Belinha fez uma feijoada à brasileira e o pai dela cancelou o jogo de bilhar que tem às quintas para conhecer o namorado da filha. Quado bebiam café, isto aconteceu:
Zé, a Belinha diz que tu consegues chegar com a língua à ponta do nariz.
Apesar de daltónico em último grau, naquele momento, Zé soube que o vermelho predominava na sua cara, estendendo-se um pouco até ao pescoço. Sempre fora assim, corava até meio do pescoço. Vá-se lá saber.
O Zé deitou a língua para fora e fê-la chegar à ponta do nariz. Todos bateram palmas durante um tempo que Zé classificou como um longo período de tempo. Mas não foi tudo.
Mesmo a chegar a casa foi mandado parar pela polícia. Pinheirinho familiar e divertido vulgarmente pendurado no retrovisor que aromatiza o carro com cheiro a pinhal. Talvez este mentol, pinhas prensadas matem o bocadinho de uva que bebi ao jantar, pensou.
Bufa o balão, bufa Zé.
O senhor tem 0.5 gramas de álcool no sangue.
Tinha dito que o Zé era esperto, ele percebeu a grande estupidez que tinha feito, depressa disse,
Senhor guarda (ele tira os restos mortais do pinheiro da boca) é disto.
É disto?
Sim, isto tem álcool.
Você está a brincar comigo.
É disto senhor guarda. Eu não bebi nada.
Não bebe. Costuma comer pinheiros de papel.
Foi só hoje. Eu juro.
Doce extracção
A coisa mais estúpida que ouvi, veio da televisão, sob um anúncio a um supermercado. Provavelmente, o burro sou mesmo eu, e isto já estava a ser feito há muito tempo. Às tantas, nas catacumbas dos armazéns, rapazes e raparigas equipados como deve ser procederam discretamente à mega operação a que, por motivos óbvios, intitularam: “doce extracção”. Quem as quer?
Uvas sem grainha, no pingo doce, a 2,99€ o quilo.
Olga
É interessante a forma como cada um descobre exercícios distintos para fazer com o seu corpo ou partes dele. Por exemplo,
a dona Olga,
Gosto da dona Olga. A dona Olga costuma comer iogurtes de banana que traz de casa dentro de um saco plástico de propaganda farmacêutica, não vá a minha avó gastar 0.50€ diários na velha que tem uma fixação por sudokus dificuldade muito fácil. Todos os dias, úteis, repito, todos os dias úteis, a dona Olga senta-se na poltrona que era do meu avô e cruza as mãos. Com uma particularidade, a dona Olga quando cruza as mãos separa os polegares um do outro. Para quê? A dona Olga faz todas as tarde, há mais de quinze anos, uma brincadeira gira. Com as mãos cruzadas, começa com um rodopio obsessivo, quero dizer, os polegares começam a desenhar no ar uma espécie de círculos intermináveis. Eu sei que isto é difícil de explicar, temo não conseguir. Aqui vai, temos duas mãos. As mãos aproximam-se e os dedos cruzam-se, assim é que é. Os dedos das mãos cruzam-se, mas os polegares permanecem afastados um do outro. Experimentem, a sério. É divertido. Portanto, dedos das mãos cruzados, polegares ligeiramente afastados um do outro e agora é que começa a rambóia. Vamos. Cada polegar começa a desenhar um pequeno circulo um à volta um do outro, mas atenção! Os polegares não se podem tocar. Isso, devagarinho, estão a conseguir? Concentração. Destreza. Que eu nunca vi a dona Olga perder.