As coisas arrumadas

Não gosto de arrumadores. Fico enjoado só de olhar para aqueles farrapos, com sebo até aos olhos e irresolúveis problemas do foro oral. Não gosto, pronto. Estou no meu direito. Outro dia, tropecei numa coisa dessas. Ou melhor, uma coisa dessas tropeçou em mim, estava eu a escassos metros do meu veículo. Senti um cheio nauseabundo, uma mistura de mofo e humidade, qualquer coisa de indescritível que emanava da espécie de manta rota que trazia pelos ombros. Disse ele:
- Uma moedinha.
Nunca trago moedas no bolso, mas tinha pago a raspadinha com vinte euros e o tipo do quiosque: "Vai ter de ser assim, que a minha filha levou-me o trocado".
- Desaparece.
O fóssil estende a mão. É uma mão magra e enrugada. Parece a mão do meu tio avô Alberto.
- É para beber um copo de leite.
Não tem vergonha. São dez da noite e estamos numa zona despida da cidade. O máximo que pode encontrar são vestígios de fezes caninas pelos passeios e meia dúzia de carros abandonados. Para beber leitinho, tinha de andar pelo menos sete minutos a pé até ao café central que entretanto fecha porque já são dez e meia e tudo o que aconteceu nesse dia foi servir três cafés e quatro bagaços.
- Leite faz mal.
O tipo reage. Noto pregas a formarem-se em volta dos olhos e o maxilar encovado salienta a boca fina e branca que parece tremer desalinhada.
Não comeces a chorar palerma. Agora não. Continuo:
- Tenho de ir.
Penso nas gavetas organizadas da prima Lurdes, tudo identificado por cores, tamanhos, letras, tipo. Depois, consigo ver ao fundo da rua um contentor gigante amarelo que leva tudo o que não presta. A minha cidade está arrumada. Assim como mundo. O senhor que gere o espaço para aparcamento de viaturas já não está ali.

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