É um bicho

A minha tia-avó é milionária. Em vez de Biarritz ou Mónaco,
Termas de Caldelas, Amares, Portugal.
Tudo bem, pelo menos para já. Aconteceu o seguinte,
Meu filho, a tia gostava muito que viesses cá almoçar.
Sabe tia, ando com uns problemas de pele, umas comichões, uma coisa horrível.
Que chatice, meu filho, mas dá-te muita comichão, é filho?
Sábado, 13h30, sala de refeições do Hotel das Termas de Caldelas
Menu baixas calorias, um peixinho grelhado, uma sopa sem batata, coisa simples. Para mim, bife pimenta e meia garrafa de esteva. Ainda o enjoo da viagem e o cheiro da laca da tia. Ainda as unhas da tia a comicharem a minha mão e uma pêra rocha à sobremesa porque a frutinha faz-te bem meu filho. Há filmes de terror mais simpáticos do que este. Sob pretexto de um final feliz, uma massagem anti-stressante.
Obrigado tia, mas não precisava.
Está calado filho.
A tia também vai fazer?
Não, a tia agora vai ter de ir para o quarto beber muita muita água.
Porquê?
És alguma criança? Livre-nos Deus, sempre com perguntas.
Está bem.
Uma espécie de bicho do sexo feminino com penugem acentuada dá entrada da minha pessoa no Spa, através de um rápido e animalesco toque no ecrã do computador. Sigo-a, com medo, até aquela que será a sala do terror. Alguma consequência do consumo excessivo de água ou outro tipo de perturbação própria de quem é bicho e não gosta. Tanta inocência no mesmo dia. Meu Deus, que burro, A tia marcou-te uma massagem, filho. Ainda a esperança de que, sim senhor, uma massagem é uma coisa assim agradável e boa de se receber, assim umas mãos de seda, ou de algodão, contentava-me com uma mãos de algodão, confesso. Ajustes no chuveiro (a tia tinha escolhido uma massagem com jactos de água, que amor) e ainda a possibilidade, ainda, É agora que se vai abrir a porta por onde vai entrar uma técnica que fez provavelmente formação no estrangeiro, quem sabe, uma técnica habilitada, portanto. Não este coiro, esta coisa de boca aberta, pele azul, roupão azul, chinelas azuis, fato-de-banho azul, tudo azul e, a começar algum vapor na sala da tortura. O chuveiro ok e ninguém. O chuveiro ok. Tirar o roupão por favor. Argh, os bichos também falam, os bichos podem falar, este bicho fala. Já sabia que falavam, mas não este, não este bicho. O chuveiro ok e ainda ninguém. Uns chinelos ridículos que pude trazer como recordação. Despir o roupão, pode-se deitar. Eu não quero. Posso desistir? Como é que se faz? Tia, tiiiiiia. És uma grande vaca. De que matagal vieste tu?

Cebolíce

A vida é como uma cebola. Feita de camadas e às vezes a gente chora.

Espera aí

A sala de espera de um hospital é uma coisa gira. Estou a brincar. A sala de espera de um hospital é uma coisa mega espectacular de gira. De qualquer das formas não estou arrependido. Pude, com alguma tranquilidade, comer dois queques de cenoura e beber três meias de leite. Alimentar-me como um humano, já que ultimamente tenho feito muito refeições à base de sangue fresco, daquele que não vai à panela. O avô também era assim, tinha eu sete meses quando me levou à tasca do Emílio. Dois shotes mosanguito e um pratinho de caracóis, nunca mais me esqueço. Bom, mas concentremo-nos no que interessa.
Éramos quatro, quer dizer, comigo cinco. Se contarmos com o Jorge e a Sónia que estavam na televisão, éramos sete. Não vou contar com o auxiliar que arrastava os pés. Umas socas verdes de plástico cheias de furinhos para o chulé, depois quem se lixa. Quer dizer, o tipo chamava por um tal de Albano Soares Pereira, mas nada. Provavelmente um tipo muito mais esperto do que nós. A pescar ou no horto da Boavista, ali é que não. Fedor hospitalar como deve ser. Alguns cartazes interessantes que nos avisavam que o mais certo é sermos portadores de diabetes tipo2, tuberculose, gripe das aves e obesidade mórbida. Cancro da mamã, do colo do útero e acho que mais nada. É, acho que não, pelo menos naquela sala. Foi então que dei um espirro e a sala inteira olhou para mim. Logo depois, o segundo espirro. A Sãozinha levantou-se e estendeu-me um lenço de papel. Não tinha ranho nem nada. Tinham sido uns espirros inocentes, daqueles pouco aventureiros que não saem da casa da partida. De qualquer das formas, com medo das represálias, aceitei a oferta. A Sãozinha diz-me baixinho
“Ouça uma coisa, o senhor não tem culpa, mas isso passa os micóbrio à gente.”
A Sãozinha estava sentada numa cadeira que estava paralela à minha, falamos numa distância de três, quatro passos largos.
“Eles voaram até aí, foi?”
“Vem para o Doutora Glória?”
“Não.”
“Ah.”
Olhei para o meu lado esquerdo e, sobre a mesa, um folheto interessante, Associação de obesos e ex-obesos de Portugal. Hum. Isto está a melhorar.
“Mas é alguma coisa no coração, é?”
Na televisão o Jorge dá 1500€ a uma Sãozinha que teve a habilidade de ter uma porrada de netos.
“Sofro de uma coisa estranha.”
Uma mosca rodopiou no espaço que existia entre o meu queixo e o nariz da Sãozinha. Fiquei à espera que a Sãozinha soltasse a língua, A que horas vai morrer? Sofrer muito ou só um bocadinho? Vou ser cremada e o senhor? Desta vez até o tipo das socas aos furinhos punha os olhos em cima do meu colete de malha verde seco e descia um bocadinho até às minhas mãos quietas que seguravam, desinteressadas, o terço do queque de cenoura que estava por comer.
“Tenho dois corações.”
“Credo!”
Agora o chão, o tecto, o que estava para lá do cimento e das portas, tudo sem se ouvir. Ah! Pela primeira vez o barulhinho do meu estômago a espreguiçar-se. Foram precisos poucos segundos para que a Sãozinha se tivesse afastado, voltando ao seu lugar. É então que ajeita o saco plástico que tem a seus pés. Alguma blusinha fresca, muito jeitosa, comprada nos chineses. Para a próxima, aquele servicinho de chávenas de café para oferecer ao Quim que faz anos já para o primeiro de Maio. O tipo das socas aos furinhos a esboçar o que parecia ser um sorrisinho cúmplice muito irritante, algo muito próximo de uma grande carícia ao seu ego, uma exaltação à sua inquestionável inteligência, claramente superiror à daqueles parvos todos. A expressão da minha face inalterável. Só depois da trinca no queque de cenoura é que talvez, digo apenas talvez, possa ter ficado a ligeira impressão de que me estava a rir.

No lugar do coração, uma fartura

Sou miserável. Por natureza, um miserável incorrigível, mas não invejo os cães. Desconhecemos as suas dívidas ao banco e, andar de coleira não deve ser, de todo, agradável. Descobrir aos trinta a verdadeira vocação é, no mínimo, deprimente. Quando essa vocação passa por ser vendedor de farturas, pior ainda. É simples,
Não vai valer de nada ter uma pirâmide, bem razoável, feita de garrafas de óleo fula. Nem pacotes corpulentos de farinha branca de neve, de costas para o espelho. Não tenho perímetro necessário na zona abdominal, nem bocadinhos de terra na unhas, nem o sebo, nem o tufo de pêlo que sai, maroto, fora da camisa que está aberta até ao botão da calça de ganga coçada. Nem sequer gaja, porra. Uma Maria, de braço descoberto, a manobrar com agilidade uma pinça que não deixa a fartura fazer dói-dói. O nome Antunes, rei da fartura, bem no cimo, com luzinhas que piscam, quiçá algumas estrelas e uma Nicole de biquíni. Em períodos fracos da feira, caminhar despreocupado até à barraquinha do José e comprar uma olaria ou um chapéu de palha, caso alguma chuva  fraca, acontece sempre. Se tivesse netos, um daqueles cavalinhos com cabelo de corda e sorriso congelado. Ao final da tarde, sardinha com broa de Avintes e um copo de verde, ah, o vinho verde com aquele gás pequenino que faz uma comichão subtil no fim da garganta. Para acabar, duas ou três trincas no churro que ficou do meio-dia. Dar uma volta na roda gigante e conhecer uma Carolina que fecha os olhos, mesmo quando a cadeirinha ainda está perto do chão, terra batida cheia de bisgas e papel rasgado do sorteio da grande tômbola. Perguntar se a Carolina tem medo de fantasmas. Ter paciência e, nessa altura, rezar um bocadinho para que diga que sim. Senão, atirar bolas de ténis a umas latas que estão quietas. Esperar ganhar um edredão muito fofo.

Porta-te bem, senão levas uma surra

Há um ciclone, que anda para aí todo desvairado, com o nome de Flávio. Flávio, pá, a gente é a última vez que te avisa: vê lá se fazes um bocado mais de remo no ginásio, ou isso, pá. A tua prima Katarina, que assaltava velhinhos em paragens de autocarros, é hoje uma boa catequista. Por isso.

Dali do fundo, um barbeiro

A minha relação com a Tina está, literalmente, por um fio. A Tina está obcecada com a sua saúde oral (entenda-se, espaços entre os dentes) e utiliza o dito fio dental sempre que dá uma trinca num húngaro ou numa outra bolacha de pequeno porte. Traz aquilo na carteira junto do pacote de conguitos que costuma comprar depois do almoço no quiosque da Ermelinda. Acho bem que as pessoas lavem os dentes, e até os pés, eventualmente. Às vezes penso na Tina a passear pelo jardim de São Lázaro, como se fosse um cachorrinho, língua de fora e tudo. Coleira invisível, feita de fio dental. Desculpem. Esta imagem é fraquinha. Vou tentar outra vez. A Tina, a obrar bem o fio, de trás para a frente, de trás para a frente. A obrar tão bem que consegue fazer aquilo a que chamamos de buraco entre os dois dentes da frente, um buraco bem razoável, assim estilo moeda de um cêntimo. É claro que essa condição faz com que desenvolva uma extraordinária capacidade para a criação de uma vasta panóplia de sons, assobios e deitadelas de cuspo cá para fora, eventualmente até um número numa companhia de circo romeno, caso tenha sorte ou um padrinho com a mania que é espertalhão.
Eu estou no carro, sentado no banco ao lado da Tina. A Tina gosta de ouvir o oceano pacífico, o programa de rádio, claro. Mas não foi por isso que me exaltei um pouco. Foi por causa do fio. Porque nessa noite o fio tinha acabado e a Tina obrigou-me a acompanhá-la até uma farmácia. Até aqui tudo bem, se não encontrasse o Arnaldo a comprar preservativos. O Arnaldo é o irmão mais novo de um maluco que eu conheci no parque de campismo de Olhão. Tem catorze anos e pertence a um grupo de pessoas que se preocupam, de forma considerável, com a vida do urso polar, em geral. Trazia um gorro bem enfiado, era difícil ver-lhe os olhos, ainda assim, arrisquei uma palmada nas costas:
“Arnaldo.”
Ele franze e coça a zona lateral da narina esquerda.
“António! Também queres disto?”
“Não. A Tina veio comprar fio dental.”
“A Tina?”
“Uma amiga.”
Enquanto o Arnaldo olha para dentro da farmácia, eu tento, disfarçadamente, descobrir a moribunda que quer brincar aos polícias e ladrões com o Arnaldo, “o defensor da vida do urso polar”, e encontro, dentro de um smart amarelado, duas mãos que seguram qualquer coisa com um folheto promocional relativo à semana de enchidos do continente. De forma trágica, esse mesmo folheto, escondia, por assim dizer, o focinho daquela que só podia ser a sua ursa.
“Uma amiga, pois, pois."
“Vais bem munido?”
O Arnaldo dá uma gargalha nervosa.
"Tinha poucos trocos."
"Ai, o malandro."
Depois de um silêncio curto, o Arnaldo atreve-se o suficiente, sendo assim capaz de proporcionar na parte interior das minhas veias uma longa, silênciosa e interna gargalhada:
“Vem dali um barbeiro do caralh..”
“Barbeiro?”
“Nunca ouviste?”
“Vem dali um barbeiro, quer dizer, vem dali um frio.”
“Ah.”
“Percebeste?”
“Frio de cortar à faca?”
“Sim, daí o barbeiro.”

Quero conhecer esse génio. Ser amigo desse génio, eventualmente envolver-me em torneios de malha, com esse génio notável. O génio que disse: "Vem dali um barbeiro do caralh..". God damn it!

Depois, como isso do barbeiro era mesmo verdade, apesar de não o ter conseguido ver na realidade, talvez mais ao fundo da rua, não sei, entrei no carro e rodei a chave. O próximo gesto foi o de desligar o rádio. Ouvia-se um rolo de carne meio choramingas, dizia numa língua diferente: “oh, eu farei qualquer por amor, oh eu farei qualquer coisa por amor, oh eu farei qualquer coisa por amor, mas não farei isso.”

Olho de chimpanzé

Conta-se que a minha tia-avó, no dia do casamento, para além de estar a sofrer dos pés, quiçá uma unha encravada ou um joanete na fase do armário (não há provas), estava, e em relação a isso existem registos fotográficos que o comprovam, estava, definitivamente sendo alvo ou, melhor dizendo, sendo portadora, assim é que é, sendo portadora de um considerável e proeminente treçolho. Até bem recentemente acreditei que o treçolho não figurasse naquela lista de coisas terríveis que nos podem ser herdadas por uma tia-avó. Estava redondamente enganado. Hoje, carrego um treçolho bem adolescente no olho direito. Não é, de todo, desagradável, apesar de me retirar quase total visibilidade e, de vez em quando, largar um pus idêntico ao mel, só que menos doce (já provei). Parece assim, é como se tivesse um chimpanzé nas costas, só que no olho. Querendo ser optimista.. não, não consigo.

Supermercado das alcatifas

Um supermercado das alcatifas é um sítio espectacular. Ontem passei parte da minha tarde com a minha irmã num supermercado das alcatifas. Posso garantir que não me divertia tanto desde que vi a minha tia tropeçar num pacote de arroz carolino no hipermercado jumbo. Convém dizer que eu odeio tapetes. Aliás, abomino tapetes. Sou invulgarmente alérgico a tapetes. Acho que os tapetes são uma coisa feia, em alguns casos, até mesmo, horripilante. Então aqueles tapetes que têm a grossura de uma estante de madeira com para aí vinte cinco centímetros, daquelas que para além de uma boa porrada de livros podem também carregar com relativa facilidade algumas crianças obesas, esses tapetes assustam-me muito. Juro de pés juntos que tenho medo desses tapetes. No supermercado das alcatifas vi um tapete desses que olhou para mim e viu que eu não gostava dele, nem um bocadinho. Estava em saldo, o miserável. É bem feito, não fosses tão feio. O palerma tinha a cor de um bege assim para o caidito e uma coisa parecida com uns desenhos chalados, como se estivessem em coma ou fossem só apenas indivíduos muito tímidos. Mas não eram indivíduos no verdadeiro sentido do termo, eram mais uns riscos, acho eu. O mais sensato era afastar-me de ali, foi quando fui dar com a minha irmã sentada num desses pufs de cor eléctrica. Sentei-me ao lado, num desses pufs igualmente de cor eléctrica e pensei um pouco no tapete em si mesmo e como o tapete era, em si mesmo, algo de profundamente detestável. Eram tantos à minha frente que comecei a ficar tonto, um bocadinho enjoado, a imaginar que estava debaixo daqueles tapetes todos e alguns eram mesmo tapetões grandes e com pelo comprido. Alguns eram mesmo bichos brancos grandes, tipo ursos polares ou isso. É provável que tenha esbranquiçado um pouquinho porque a minha irmã foi prontamente buscar-me um copo de água. Um bocado de sorte, lá existia um daqueles garrafões de água gigantes ao contrário, como há nas salas de espera dos dentistas. A minha irmã sabe, desde sempre, que sou um tipo extremamente estranho, ainda assim não me faz muitas perguntas, o que faz dela uma pessoa com uma inteligência emocional muito acima da média. Talvez por isso, voltámos aos pufs, como se nada tivesse passado. A minha irmã pergunta o preço do puf porque até à data era o mais confortável que tinha conhecido, a tipa da loja diz que o puf custa cem euros e a minha irmã pergunta se não há desconto, mas a tipa diz que não, que aquele é um produto que se bende benhe tuôdo o áno. É pena.

O confessionário

A parte mais interessante do meu Natal aconteceu por volta das duas da manhã do dia 24 quando o tio fino reclama a minha companhia para ir comprar cigarros. A opinião geral lá em casa era de que não havia nada aberto aquela hora. Foi aí que eu tive de explicar que existem bombas de gasolina onde tipos, provavelmente tão energéticos e bem cheirosos como eu, vendem cigarros a atrasados mentais como o meu tio fino. O tio fino é viciado em cigarros desde os oito anos. A mãe foi dar com ele a meio de uma chuveirada com um cigarro aceso (português suave, o tio confessou mais tarde) pousado numa saboneteira pintada com o pé por um artista bastante dotado e sem mão. Adiante, metemo-nos no carro do tio fino, um peugeout 206 cor verde para o cáca e o tipo liga o rádio e está a dar qualquer coisa parecida com uma ópera. Eu pergunto ao tio fino se ele fazia questão de ouvir aquela tipa gorda, ele responde: sabes lá tu se ela é gorda, eu: costumam ser, ele: ai é? eu: não é? ele: sabes muito, sabes. Calei-me logo, até porque entretanto pareceu-me ver o pai natal ali perto da churrasqueira carvão II. Mas não devia ser porque quando olhei de novo, aquilo era só uma árvore. O tio fino começa então a fazer-me perguntas bizarras acerca da minha vida onde se incluíam patetices evidentes como: como é trabalhar num restaurante na periferia da cidade e se o Víctor Baía enchia sempre o depósito quando punha gasolina. Tentei não levar as questões muito a peito e respondi de forma educada. O tio fino ficou desapontado, provavelmente porque estava à espera que eu lhe dissesse que eu era um mártir tipo santinha alexandrina de balasar. Continuando, ele compra os cigarros e traz na mão um pack de cerveja. Pousa o carro ali perto da alfândega e sai do carro: desculpa lá, estava a precisar de libertar uns gases. Deprimente, penso. Diz: já viste o rio hoje? A minha única hipótese de sobrevivência era aquela garrafa de cerveja (cristal). Confiro com a mão, está fresca. Saco do canivete suíço e bato a porta do carro: o que é que tem? ele: Porra! Já estás a beber seu animal? É parvo, digo: era para guardar? O tio fino dá uma gargalhada: tu és um gajo esperto, meu burro. Lembrei-me da gata bílis, não sei porque carga de água e, pouco depois, relembrei os azulejos miseráveis da minha casa de banho. O tio fino estava entretido a cantarolar qualquer coisa como um fado de Coimbra e eu achei por bem deixá-lo estar. Foi aí que senti qualquer coisa muito perto da melancolia e, para contrariar, disse ao tio fino que já tinha pensado em ir para padre. O tio fino não acreditou. Eu disse que sempre gostei de saber basicamente tudo sobre a vida das pessoas, católicas e não só. O confessionário era também um sítio fixe para me esconder do meu primo quando brincássemos às escondidas. Logo a seguir, o tio começou a contar como tinha sido a primeira vez que tinha andado na roda gigante. As dúvidas relativas à minha potencial vocação dissiparam-se um pouco mais quando olhei para o relógio e vi que eram três e meia da manhã. Tinha dito apenas duas palavras. Foi bom. Gosto de ser o poço onde os outros deixam, muito ao de levezinho, cair os seus puzetes mentais.