Novembro à chuva ou Axl Rose só exististe porque eu já tive doze anos

O Axl Rose está gordo. O Axl Rose está gordo e velho. Procuro no youtube o Axl Rose do tempo em que lembro do Axl Rose. À memória; e o cliché é tanto, não sei como fugir. Não sei como se põe aqui. Como se pode dizer, escapar ao que fomos?
Conheci o Axl Rose quando tinha doze ou treze anos e as hormonas aos saltos. O Axl Rose costumava ter um lenço apertado na cabeça, voz aguda, cabelo passado a ferro pelas costas, calções curtos de lycra, um blusão com estrelas brancas em fundo vermelho e azul.
É estúpido? Não consigo precisar o que encontrava, como não consigo dizer o bocado de mim estampado no romantismo piroso dos Armas e Rosas. Só o nome, que coisa tão. Quando comecei a escrever isto pensei que tinha muito a dizer, mas talvez não esteja preparado para um incursão ao que fui. Não podemos buscar o que já foi. Está altura de deixares essa nostalgia doentia, Antunes.



Hoje não é ontem:
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parvoíce matinal

Depois da ausência, volto com náusea q.b. e algumas considerações insignificantes sobre a alergia que me tem atacado, por completo, as narinas e a parte superior dos olhos, quase a chegar à testa. É do tempo, dizem alguns. Eu digo não, não é do tempo - é de mim. Aqui há tempos, o senhor Azevedo matou o cão malhado da Matilde. Disse entre bocejos e os faróis multiplicados em pequenos vidros na estrada que o conduzia até Gondomar: não tive tempo de travar. O tempo serve desculpa para tudo, para isto: por uma questão temporal, não tenho a cabeça disponível para procurar outros exemplos. Ah. O que quero mesmo dizer é que já nasci cansado e, por vezes, o que trago comigo é nada, roupa interior e uma camisola que me está larga. Não me interpretem mal, as coisas podem ser outras na óptica redutora das teses psicanalíticas - na minha reles opinião de campónio deprimido, isto é só, e apenas, a consequência grave da nossa total privação ao paraíso que só Eva conheceu, essa vaca egoísta. Porque os dias são chatos e os camelos com que me cruzo todas os dias são chatos e parvos - e uma pedra à beira deles é o mar, se me faço entender.

Podem esquecer, eu não me lembro de nada.

3,401,905

Vi a mãe da Raquel Pereira duas vezes. Uma vez no cabeleireiro onde costuma fazer a mise, a outra em sua casa onde vive com Raquel Pereira, sua filha única, e onde as memórias do marido infiel permanecem propositadamente espalmadas entre as capas de um bonito álbum de fotografias. Tudo o que posso dizer sobre a mãe da Raquel Pereira é passível de ser resumido nesta palavra: parva. É também uma forma de vos poupar algum tempo e acabarem rápido com esta inútil leitura. Indo à questão fundamental:

Eu estou sozinho com a Raquel Pereira, no seu quarto decorado a papel de parede cor-de-rosa quando ela me estende o copo e diz: Dou-te cinquenta paus se beberes isto. Eu acho justo; cinquenta paus naquela altura era muito dinheiro. O copo está cheio de vodka mas, assim a olho nu, as semelhanças com água do fastio, por exemplo, são bastante evidentes.
A Raquel Pereira tem a pele branca; gosto analisar com atenção as sardas que circundam o seu nariz. Naquele momento estou concentrado nos seus brincos - são dois papagaios amarelos. Diz: É água. Vejo caganitas metálicas estacionadas nos seus dentes; um sorriso mais bonito, é só uma pequena correcção, o pai que a convenceu; o único a quem obedece, à mãe só lhe falta bater. Um segundo após a tonight, tonight dos Smashing Pumpkins dentro do morango gigante que é aquele quarto, a Raquel Pereira pega no meu braço e não sei porquê mas aquele aparelho não lhe ficava mal, aliás, até achava aquilo sexy. Moderno talvez seja a palavra correcta, eu achava o aparelho da Raquel Pereira moderno e isso tornava-a, naturalmente, apetecível.
No meu tempo, nada de youtubes, fui agora ver, curiosidade porque falo disto, para tonight, tonight: Views: 3,401,905.
Continuando, ela pega em mim e abraça-me; encosta o lado direito da sua cara ao lado direito da minha cara e tem a boca perto do meu ouvido. Nesta altura sinto que sou estúpido, não por alguma razão em especial, mas só pelo simples facto de não ser possível alguém não se sentir estúpido, afinal de contas. Ela cheira a cereja, não sei se do quarto, se de algum perfume. O que posso precisar é que o cheiro é forte e já está dentro da minha boca. É aí quando ela se afasta, pega no copo. Não diz nada. Eu também prefiro estar calado. Bebo aquilo depressa. Depressa, depressa, afinal não é água. Cinco foram os minutos que permaneci de pé, uma estimativa. Pouco depois a Raquel Pereira está deitada ao meu lado na sua cama, uma colcha com pequenas flores; diz-me ao ouvido coisas que nunca fui capaz relembrar.


Para a Ana, "pequena-grande" leitora, que não gosta de ler em ecrãs de computador. E com razão.

A melancolia é de cristal

Pertenço à raça dos que preferem ser crianças para sempre. Apesar da cerveja. As crianças normalmente não gostam de cerveja. Eu gosto. Gosto bastante. Cerveja talvez seja a coisa que eu gosto mais, a seguir aos pastéis de bacalhau da senhora Arminda. Também gosto de me rir dos outros, mas estou cansado que ninguém me leve a sério, até na padaria. Passou-se anteontem, tinha vindo de jogar futebol com cinco ou seis (éramos dez na realidade) brutos que gostam de jogar descalços e que acabam com os pés a sangrar e unhas ao dependuro. É estúpido, pois, mas é mesmo o que eles são. Estúpidos. Estava a dizer, o jogo nunca foi uma coisa que me agradou, quer dizer, falo do jogo em grupo, o jogo onde há uma equipa contra outra equipa. No fundo, tenho pena de todos os jogadores de equipas e aproveito para exprimir, aqui, a minha total compaixão para com todos os jogadores de equipas. Cedo cheguei à conclusão que jogadores são os que estão de fora, atentos à figura de parvoíce colectiva que existe em qualquer equipa de seres humanos. É parolo todo aquele entusiasmo em torno do “um por todos, todos por um”, é parolo e saloio. É primário. Que se lixe o outro. Não tenho por hábito esfolar qualquer parte do corpo, muito menos no âmbito de um jogo pateta onde nem sequer há dinheiro ao barulho. Por dinheiro, sou capaz de tudo. Uma vez, por cinquenta escudos, bebi um copo de plástico de trinta e três centilitros cheio de vodka. Desculpem, correcção: não bebi o copo, bebi o que estava dentro do copo, se bem me entenderam. Tinha catorze anos e a cabeça rodou, um pouco, alguns minutos após a ingestão do líquido. Acredito que esse tenha sido um momento mágico, pois nunca mais fui o mesmo. Estava no quarto da Raquel Pereira que era uma tontinha que tinha uma paixão por mim porque eu seduzia as professoras com palavreado floreado que aprendia com as tias do meu pai e fatias de bôla de carne que a minha avó me metia no bolso da pasta. Acho que era por causa disso, nunca fui bonito, nem abdominais nem nada. E, de repente, estas coisas que escrevo são capazes de atravessar, devagarinho, as entranhas mais cínicas da minha pessoa. E isso é nostálgico, tão nostálgico que sou obrigado a levantar-me e ir buscar uma cristal mini para segurar a lágrima. Chorar não é comigo, chorar para fora. Mas, agora mesmo, é como se estivesse em pelota. A sério. Acontece quando digo qualquer verdade. E a bôla de carne da minha avó não consegue ser igualada por mais nenhuma. A Raquel Pereira não entrou na universidade. Ajuda numa loja decoração e tem muito jeito para vender monos, menos mal. O que aconteceu na padaria, já não importa. Vou-me sentar um bocado no sofá.

É mutante

O Pedro nunca pisou cocó. O Pedro nunca pisou cocó e também nunca piscou os olhos, nem quando foi o eclipse solar, garanto eu que estive lá. Quando foi do eclipse solar, o Pedro franziu ligeiramente o nariz, franziu um bocadinho e serviu-se da mão direita para fazer uma espécie de pala de boné improvisada, mas nunca piscou, nunca piscou por um só segundo, os olhos. É formidável, não sei como é que ele faz. Do cocó é mais fácil, uma questão de sorte também. Agora do piscar, não percebo. Confesso que foi por isso que me afastei do artista, logo após o eclipse solar, em 1999. Comecei a desconfiar que o tipo fosse um mutante, ou algo assim. Eu sou do tipo porreiro, que é amigo de toda a gente, até de animais. Mas com mutantes sempre fui um pouco para o reservado. Acho melhor. Acontece que fui encontrar o Pedro na sala de espera do dentista. O que vou relatar de seguida pode ser impressionante para os mais medricas.
- Atão pá!
Dou um aperto de mão ao Pedro (ou deverei dizer mutante?). É nesta altura que penso que o perdão talvez seja um sentimento que deva cultivar um pouco mais, que é uma coisa que se pode ir treinando enquanto se anda a pé ou se faz cocó, por exemplo. Era o meu debute naquele consultório. Tinha, recentemente, abandonado a Dra. Raquel porque a senhora cheirava a suor de cavalo e quando me arrancou os sisos chegou quase a abraçar-me dizendo que eu era bravo, paciente exemplar, um herói dos tempos modernos. Há decisões fatais, à custa da minha impaciência, estava em casa do Dr. Flávio com Pedro, o eventual mutante, a dois segundos de mim.
- Não sabia que vinhas a este dentista.
Merda, pensei. Trinta graus lá fora e mesmo à minha frente uma camisola de lã e um par de calças de fazenda a embrulhar aquele rapaz. Muito bem, isto promete.
- É a primeira vez.
Igualzinho, até agora nem um pisc-pisc. Nem um. Arrgh, que isto enerva, isto enerva, pensei.
- É porreiro, o gajo.
- Ainda bem. A outra arrancou-me os quatro sisos duma só vez. Fiquei com a cabeça feita numa bola.
O Pedro riu-se um bocadinho da minha desgraça. Reparei com atenção, o maluco tinha na mão uma revista que o ensinava a escovar os dentes.
- Olha, tens visto o Mané?
- Nunca mais o vi.
Uma menina de estatura invulgarmente baixa chama pelo nome: Pedro Luís, pode entrar. Pensei, estou safo, finalmente. O Pedro estende-me a mão.
- Gostei de te ver, rapaz.
Gostei de ter ver, rapaz? Pensei. Fiquei mudo. Estendi-lhe a mão porque aprendi a ser agradável. É melhor, disse a minha mãe dentro da minha cabeça. É bom que toda a gente se entenda. É, salvo raras excepções, respondi-lhe telepaticamente. O Pedro foi ter com o Dr. Flávio. Foi nesta altura que pensei que até era possível, sim na cena do eclipse, até seria possível, talvez, apesar de tudo, mas quando há um aparelho, daqueles que enquanto comicham o dente têm a proeza de lançar esguichos de água pela cara toda. Foi nesta altura que pensei que quando o esguicho se encavalita pela boca acima até às orelhas, até à testa. Foi um impulso. Entro pela porta, Dr. Flávio, tem de compreender. Este pode ser o único exemplar no planeta. Possuído por qualquer coisa que até hoje não sei precisar, começo a lançar esguichos de cuspo da minha própria boca, tentando alcançar a vista amaldiçoada (acabaria por ter a certeza absoluta) daquele ser improvável, mas sem sucesso, já a menina de estatura invulgarmente baixa agarrava os braços à volta da minha cintura e berrava, temos um louco aqui dentro senhor doutor, temos um louco aqui dentro senhor doutor, é melhor chamar a polícia. O verdadeiro louco, sim, aquele ali deitado na marquesa, é que nem um só pestanejar, um só pestanejar enquanto me via a ser arrastado pela menina de estatura invulgarmente baixa e um Dr. Flávio visivelmente incomodado, a Vergonha no meu consultório, o que é que as pessoas vão dizer, logo agora que isto começava a andar, pensava ele. A sala cheia de gente, tenho de começar a dar mais atenção às horas, meu deus, cancelar os almoços com a Denise, afinal está feia e com alguma celulite, assim ninguém na sala a assistir a este circo, oh meu deus.

Estou cá fora. Estou cá fora, do lado do passeio. A minha respiração é estranha, irregular. Também estou tonto, mas no ar está um cheiro a borracha queimada, não ajuda. O sinal está vermelho para peões. Podia ser um carro, pensei.

Chispalhada

Se tivesse dinheiro comprava um aparelho auditivo para a minha irmã. A minha irmã não é surda, mas para lá caminha. Para lá corre, melhor falando. O meu cunhado era um homem portador de uma audição razoável até meados do Inverno passado, altura quando começou, também ele, a sofrer do mesmo mal. Casaram-se há dois ou três anos, sob o olhar desconfiado de um padre caquéctico e uma plateia visivelmente impaciente. Passaram a noite de núpcias a escassos quilómetros de casa, simpática residencial central, propriedade da prima da madrinha do noivo e, no dia seguinte, banharam-se pateticamente numa cachoeira algures nos Açores. Horas antes, a minha irmã tinha sido mandada parar no aeroporto por carregar três latas de chispalhada no nécessaire. Quando a autoridade pergunta, Chispalhada? A minha irmã responde prontamente, Sim, chispalhada. Segundo o relato da minha irmã, a autoridade não gostou da sua resposta e continuou assim, Vai levar três latas de chispalhada para os Açores? Sim, vou levar três latas de chispalhada para os Açores, disse a minha irmã, A menos que o senhor me impeça. O telemóvel da autoridade tocou ao som do thriller de Michael Jackson, ele atendeu dizendo isto, Então Maria? Qual foi a desculpa? A Maria lá disse qualquer coisa e depois a autoridade falou, Eu logo vi, não o deixes sair que eu vou já para casa. Desligou e disse ao meu cunhado empenhando a lata de chispalhada como se tratasse de um troféu, Diga-me uma coisa, tem a certeza que quer levar isto consigo? O meu cunhado terá dito, Sim, essas latas de chispalhada são minhas, gosto muito de comer chispalhada senhor agente. A autoridade terá sorrido cinicamente e a minha irmã colocado novamente as três latas de chispalhada no nécessaire.
To be continued...

Neste domingo estarei com uma intoxicação alimentar

Neste domingo estarei com uma intoxicação alimentar graças ao ovo da páscoa oferecido pela dona Adelina do segundo andar. Antes disso, pela hora do almoço, comerei cabrito, como é habitual nestes dias e enfrascar-me-ei com duas ou três garrafas de tinto. Não comerei sobremesa, contentar-me-ei com o insípido café de saco e, minutos depois, proporcionarei ao meu cão um agradável passeio que o fará exercitar as patas e defecar um pouco.
Não pensarei em nada, aliás como é meu costume, nem farei esforços por trocar simpáticas palavras com os vizinhos. Quando voltar a casa, entrarei no quarto da minha mãe avisando que o cão tivera defecado menos do que o habitual, ao que a minha mãe responderá que aquilo é apenas uma fase em que o bicho anda mais preso. Passarei então até à sala onde encontrarei o meu pai a jogar cartas com o meu tio fino. Serei convidado a jogar, mas tal não realizar-se-á, o crapô é um jogo disputado por dois jogadores, direi eu. O meu pai dirá, este meu filho devia ser cientista e depois, juntamente com o tio fino, soltará uma breve gargalhada. Nesta altura, estarei extremamente entediado e pensarei sobre as possibilidades que aquele dia poderá encerrar. Chegarei à conclusão de que não poderei esperar por nada de excitante. É nesta atura que,

Me sento à janela. A minha mãe toca-me no ombro com um sorriso de domingo. Tem na mão um objecto com forma de ovo embrulhado num papel que não sei definir, diz-me, foi a dona Adelina que deixou para ti. Começo a despir aquilo que me parece ser um ovo e, no papel que não sei definir estão as minhas tardes na casa da dona Adelina, eu pequeno, a dona Adelina uma espécie de ATL. No caderno de duas linhas, a escavadora borracha porque, o menino não pode sair por fora. Bolacha Maria esmigalhada com sumo de laranja e banana, lá fora, leite achocolatado, pães com manteiga, bolos, santa ignorância, meses, anos, hoje temos um docinho para o lanche, lá fora guloseimas, hoje temos um doce para o lanche, Bolacha Maria esmigalhada com sumo de laranja e banana. Pouco antes da minha mãe chegar, era certo, os dedos da dona Adelina penteavam o meu cabelo. É só por isso que a perdoo. Só por isso. Como se a velha fosse um monstro, como se no momento em que penteava o meu cabelo com as suas mãos, a dona Adelina fosse uma anjo.
Seguro um ovo de chocolate, foi a dona Adelina do segundo andar que mo deu. Sento-me em frente à televisão e estaciono no Biography Channel. Fala-se sobre a depressão pós-parto da Brooke Shields. Começo a comer o ovo que a dona Adelina me deu e penso que a dona Adelina, caso tivesse tido filhos, não deveria ter sofrido desse mal, pobre dona Adelina, três gatos e um peixe. Quando acabo de comer o ovo de chocolate é altura de ir até à cozinha beber meia caneca de água. Pelas duas e trinta e cinco da manhã começo a sentir os primeiros sintomas.

Pinheirinho

A Belinha pousou os cotovelos na mesa e fez aquilo a que os mais sensatos chamam de sorriso amarelo. A culpa tinha sido dela. Imprudente Belinha, foi ela que contou à mãe. Era uma tarde de chuva e Belinha e sua mãe punham o bacalhau de molho. De entre outros assuntos, podiam ter falado, precisamente, sobre o facto dos dias chuvosos serem dias propícios para pôr o bacalhau de molho na marquise, menos luz, temperaturas mais baixas, menos risco de cheiros e água choca. Mas não. Belinha preferiu chamar o Zé.
O Zé consegue tocar com a língua na ponta do nariz.
Ai é?
A mãe de Belinha deitou a língua para fora. A língua da mãe da Belinha tinha pouca ou nenhuma elasticidade.
Eu não chego. Tu chegas?
Belinha deitou a língua para fora. A língua da Belinha tinha mais elasticidade do que a de sua mãe. Belinha não conseguia chegar com a língua à ponta do nariz por um ou dois milímetros.
Estás a ver? Quase que chego.
Depois de porem o bacalhau de molho, Belinha e sua mãe tentaram várias vezes, em frente ao espelho, chegarem com a língua à ponta do nariz. Não tiveram sucesso.
No dia em que o Zé foi lá jantar, a mãe de Belinha fez uma feijoada à brasileira e o pai dela cancelou o jogo de bilhar que tem às quintas para conhecer o namorado da filha. Quado bebiam café, isto aconteceu:
Zé, a Belinha diz que tu consegues chegar com a língua à ponta do nariz.
Apesar de daltónico em último grau, naquele momento, Zé soube que o vermelho predominava na sua cara, estendendo-se um pouco até ao pescoço. Sempre fora assim, corava até meio do pescoço. Vá-se lá saber.
O Zé deitou a língua para fora e fê-la chegar à ponta do nariz. Todos bateram palmas durante um tempo que Zé classificou como um longo período de tempo. Mas não foi tudo.
Mesmo a chegar a casa foi mandado parar pela polícia. Pinheirinho familiar e divertido vulgarmente pendurado no retrovisor que aromatiza o carro com cheiro a pinhal. Talvez este mentol, pinhas prensadas matem o bocadinho de uva que bebi ao jantar, pensou.
Bufa o balão, bufa Zé.
O senhor tem 0.5 gramas de álcool no sangue.
Tinha dito que o Zé era esperto, ele percebeu a grande estupidez que tinha feito, depressa disse,
Senhor guarda (ele tira os restos mortais do pinheiro da boca) é disto.
É disto?
Sim, isto tem álcool.
Você está a brincar comigo.
É disto senhor guarda. Eu não bebi nada.
Não bebe. Costuma comer pinheiros de papel.
Foi só hoje. Eu juro.

Doce extracção

A coisa mais estúpida que ouvi, veio da televisão, sob um anúncio a um supermercado. Provavelmente, o burro sou mesmo eu, e isto já estava a ser feito há muito tempo. Às tantas, nas catacumbas dos armazéns, rapazes e raparigas equipados como deve ser procederam discretamente à mega operação a que, por motivos óbvios, intitularam: “doce extracção”. Quem as quer?


Uvas sem grainha, no pingo doce, a 2,99€ o quilo.

Olga

É interessante a forma como cada um descobre exercícios distintos para fazer com o seu corpo ou partes dele. Por exemplo,

a dona Olga,

Gosto da dona Olga. A dona Olga costuma comer iogurtes de banana que traz de casa dentro de um saco plástico de propaganda farmacêutica, não vá a minha avó gastar 0.50€ diários na velha que tem uma fixação por sudokus dificuldade muito fácil. Todos os dias, úteis, repito, todos os dias úteis, a dona Olga senta-se na poltrona que era do meu avô e cruza as mãos. Com uma particularidade, a dona Olga quando cruza as mãos separa os polegares um do outro. Para quê? A dona Olga faz todas as tarde, há mais de quinze anos, uma brincadeira gira. Com as mãos cruzadas, começa com um rodopio obsessivo, quero dizer, os polegares começam a desenhar no ar uma espécie de círculos intermináveis. Eu sei que isto é difícil de explicar, temo não conseguir. Aqui vai, temos duas mãos. As mãos aproximam-se e os dedos cruzam-se, assim é que é. Os dedos das mãos cruzam-se, mas os polegares permanecem afastados um do outro. Experimentem, a sério. É divertido. Portanto, dedos das mãos cruzados, polegares ligeiramente afastados um do outro e agora é que começa a rambóia. Vamos. Cada polegar começa a desenhar um pequeno circulo um à volta um do outro, mas atenção! Os polegares não se podem tocar. Isso, devagarinho, estão a conseguir? Concentração. Destreza. Que eu nunca vi a dona Olga perder.

Eu sou o 411

Nasci pateta. Assumo, sem vergonha. Foi com alguma sorte que a minha mãe não me matou com uma amona, era eu pequeno mal me segurava das pernas. Mais ou menos como agora. A diferença nos pêlos, só isso. E o que está por dentro, o que está por dentro talvez cheire um pouco a especiarias guardadas há anos em frascos mal vedados, mas sem importância porque não há aqui ninguém. Para já, pelo menos. Talvez vá dar uma volta, dizem que dão 21 graus para a tarde e já são quatro e dez, o melhor é mesmo ir ou, então, ficar para aqui a falar de uma coisa que me tem incomodado ultimamente, é, é melhor ficar aqui. Sabe-se lá quem é que posso encontrar na rua. Por vezes, é altamente perigoso sair de casa. Como daquela vez que encontrei a Alice, a jogadora ocasional de canasta. Estava na repartição das finanças, bem, estava na repartição de finanças improvisada, melhor assim, uma vez que a repatição de finanças propriamante dita estava para obras. Cheiro a gente cansada e um, como é que se chama aquela coisa vermelha que há no talho e na queijaria do continente, aquela coisa de onde se puxam as senhas com números? Sim, uma coisa dessas de onde gente cansada puxa a senha que às vezes teima em não sair ou então sai com outra atrás, enfim, senhas. Tudo a olhar para o placard luminoso que exibe sempre números tão grandes e eis que o barulhinho parvo quando acontece o milagre da metamorfose e o 342 é 343. 

Indo ao que importa, que é o mesmo que dizer,  
Alice, sua comilona, nunca jogaste uma peida, tu querias era que chegasse a hora do lanche para poderes comer como uma alarve, foi por isso que inchaste, o que é que julgas? Foram os sconesinhos, o bolo prata que está tão fofinho, sim, sim, e aquela tarde de queijo com doce de framboesa que era a Teresa que a fazia, pois é, a tua favorita Alice. Eu sei. Era pequeno, mas via, Alice. A propósito, tens feito análises? Esses diabetes? Deves estar bonita, deves.  Não olhes para mim, não, não olhes agora. Eu sou o  411 e ainda está no 397, há tempo a separar estas senhas. És capaz de parar. Por favor, eu retiro o que disse, numa voz eloquente, ó bela Alice, quão formosa estás. Não? Fico calado. Sua malandra, não me deste ouvidos, tu já me viste, sua burra. Ah, também vais fingir, olha que eu sou bom nisso, ups, deixei cair a minha senha. Pimba. Tu comigo não brincas, Alice, alice, chup'ma piçe. Tenho aqui uma coisa no dedo, não sei se é um pico. Como é? Brincamos, ou colamos cartazes? Olha, por falar em cartazes, ainda não li o que diz ali, deixa ver, 
Respeite a privacidade individual, por favor aguarde a chamada do seu número afastado do balcão. 
Ó Alice, então? Chega-te para trás, sua cusca. Estás mesmo aí em cima dessa gente. Tu és impossível Alice. Alice? Alice? Tu estás a vir até aqui, tu já chegaste,
Sabes que eu vejo mal, meu filho (espeta-me com a boca dela na minha bochecha) aquele ali parece-me o António da Dina. Mas a gente chega a uma idade e sabes como é. 
E eu: Não sei, não. Como é que é?
E ela: Meu filho e a tua avó?
E eu: Morreu. 
E ela: Que Deus nosso senhor a tenha. 
E eu: Pensei que sabia. 
E ela: Dizem que tenho uma doença na cabeça, mas não me lembro qual é o nome. 
E eu: Se calhar por isso. 
Ela não arrasta os pés, não senhor, tem uns sapatos daqueles ortopédicos que duram uma vida. Bem bons. 
Ela diz: Gostei muito de te ver meu filho. Dá cumprimentos lá em casa, sim? 


Evolução das espécies

Há um senhor senil, sim senil, suponho que senil. Há um senhor que tem uma loja que vende pijamas, peúgas e lenços de assoar.
Esse senhor está senil, só pode. Esse senhor fez-me escrever
Que, em tempos, tinha lá de tudo, algodão, poliésteres, nylons. Linho também, havia quem gostasse dos linhos como ele gostava e então, toalhas bonitas de linho para o Natal e não só, chegou-se a mandar vir umas colchas bonitas de uma casa muito conhecida em Lisboa. A mulher tinha a fama de entreter a freguesia com recitais culinários que nem sempre eram claras, perdão, claros
não, primeiro o açúcar Fatinha, é, primeiro o açúcar com a manteiga, bate-se bem batidinho e só depois é que se põem os ovos. É, bate-se o açúcar, Fatinha.
Ele, rapaz rijo, a loja herdada do pai, naquela altura um senhor senil, agora nada, ou mortinho da silva como quiserem, ele subia por aquela escada acima, fogo nas pernas e nas mãos losangos de uma camisolinha de lã para o neto da senhora Aida.
Isso dantes, porque hoje o senhor senil está sentado atrás do balcão e não se mexe. Treme um bocadinho. Na montra, tombados, como ele, pedaços de papel deixam ler
casa para alugar a menina universitária
senhora com experiência passa a ferro.
Num papel quadriculado, a esferográfica azul
Camisola interior tamanho grande a seis euros.