É mutante

O Pedro nunca pisou cocó. O Pedro nunca pisou cocó e também nunca piscou os olhos, nem quando foi o eclipse solar, garanto eu que estive lá. Quando foi do eclipse solar, o Pedro franziu ligeiramente o nariz, franziu um bocadinho e serviu-se da mão direita para fazer uma espécie de pala de boné improvisada, mas nunca piscou, nunca piscou por um só segundo, os olhos. É formidável, não sei como é que ele faz. Do cocó é mais fácil, uma questão de sorte também. Agora do piscar, não percebo. Confesso que foi por isso que me afastei do artista, logo após o eclipse solar, em 1999. Comecei a desconfiar que o tipo fosse um mutante, ou algo assim. Eu sou do tipo porreiro, que é amigo de toda a gente, até de animais. Mas com mutantes sempre fui um pouco para o reservado. Acho melhor. Acontece que fui encontrar o Pedro na sala de espera do dentista. O que vou relatar de seguida pode ser impressionante para os mais medricas.
- Atão pá!
Dou um aperto de mão ao Pedro (ou deverei dizer mutante?). É nesta altura que penso que o perdão talvez seja um sentimento que deva cultivar um pouco mais, que é uma coisa que se pode ir treinando enquanto se anda a pé ou se faz cocó, por exemplo. Era o meu debute naquele consultório. Tinha, recentemente, abandonado a Dra. Raquel porque a senhora cheirava a suor de cavalo e quando me arrancou os sisos chegou quase a abraçar-me dizendo que eu era bravo, paciente exemplar, um herói dos tempos modernos. Há decisões fatais, à custa da minha impaciência, estava em casa do Dr. Flávio com Pedro, o eventual mutante, a dois segundos de mim.
- Não sabia que vinhas a este dentista.
Merda, pensei. Trinta graus lá fora e mesmo à minha frente uma camisola de lã e um par de calças de fazenda a embrulhar aquele rapaz. Muito bem, isto promete.
- É a primeira vez.
Igualzinho, até agora nem um pisc-pisc. Nem um. Arrgh, que isto enerva, isto enerva, pensei.
- É porreiro, o gajo.
- Ainda bem. A outra arrancou-me os quatro sisos duma só vez. Fiquei com a cabeça feita numa bola.
O Pedro riu-se um bocadinho da minha desgraça. Reparei com atenção, o maluco tinha na mão uma revista que o ensinava a escovar os dentes.
- Olha, tens visto o Mané?
- Nunca mais o vi.
Uma menina de estatura invulgarmente baixa chama pelo nome: Pedro Luís, pode entrar. Pensei, estou safo, finalmente. O Pedro estende-me a mão.
- Gostei de te ver, rapaz.
Gostei de ter ver, rapaz? Pensei. Fiquei mudo. Estendi-lhe a mão porque aprendi a ser agradável. É melhor, disse a minha mãe dentro da minha cabeça. É bom que toda a gente se entenda. É, salvo raras excepções, respondi-lhe telepaticamente. O Pedro foi ter com o Dr. Flávio. Foi nesta altura que pensei que até era possível, sim na cena do eclipse, até seria possível, talvez, apesar de tudo, mas quando há um aparelho, daqueles que enquanto comicham o dente têm a proeza de lançar esguichos de água pela cara toda. Foi nesta altura que pensei que quando o esguicho se encavalita pela boca acima até às orelhas, até à testa. Foi um impulso. Entro pela porta, Dr. Flávio, tem de compreender. Este pode ser o único exemplar no planeta. Possuído por qualquer coisa que até hoje não sei precisar, começo a lançar esguichos de cuspo da minha própria boca, tentando alcançar a vista amaldiçoada (acabaria por ter a certeza absoluta) daquele ser improvável, mas sem sucesso, já a menina de estatura invulgarmente baixa agarrava os braços à volta da minha cintura e berrava, temos um louco aqui dentro senhor doutor, temos um louco aqui dentro senhor doutor, é melhor chamar a polícia. O verdadeiro louco, sim, aquele ali deitado na marquesa, é que nem um só pestanejar, um só pestanejar enquanto me via a ser arrastado pela menina de estatura invulgarmente baixa e um Dr. Flávio visivelmente incomodado, a Vergonha no meu consultório, o que é que as pessoas vão dizer, logo agora que isto começava a andar, pensava ele. A sala cheia de gente, tenho de começar a dar mais atenção às horas, meu deus, cancelar os almoços com a Denise, afinal está feia e com alguma celulite, assim ninguém na sala a assistir a este circo, oh meu deus.

Estou cá fora. Estou cá fora, do lado do passeio. A minha respiração é estranha, irregular. Também estou tonto, mas no ar está um cheiro a borracha queimada, não ajuda. O sinal está vermelho para peões. Podia ser um carro, pensei.

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