O confessionário

A parte mais interessante do meu Natal aconteceu por volta das duas da manhã do dia 24 quando o tio fino reclama a minha companhia para ir comprar cigarros. A opinião geral lá em casa era de que não havia nada aberto aquela hora. Foi aí que eu tive de explicar que existem bombas de gasolina onde tipos, provavelmente tão energéticos e bem cheirosos como eu, vendem cigarros a atrasados mentais como o meu tio fino. O tio fino é viciado em cigarros desde os oito anos. A mãe foi dar com ele a meio de uma chuveirada com um cigarro aceso (português suave, o tio confessou mais tarde) pousado numa saboneteira pintada com o pé por um artista bastante dotado e sem mão. Adiante, metemo-nos no carro do tio fino, um peugeout 206 cor verde para o cáca e o tipo liga o rádio e está a dar qualquer coisa parecida com uma ópera. Eu pergunto ao tio fino se ele fazia questão de ouvir aquela tipa gorda, ele responde: sabes lá tu se ela é gorda, eu: costumam ser, ele: ai é? eu: não é? ele: sabes muito, sabes. Calei-me logo, até porque entretanto pareceu-me ver o pai natal ali perto da churrasqueira carvão II. Mas não devia ser porque quando olhei de novo, aquilo era só uma árvore. O tio fino começa então a fazer-me perguntas bizarras acerca da minha vida onde se incluíam patetices evidentes como: como é trabalhar num restaurante na periferia da cidade e se o Víctor Baía enchia sempre o depósito quando punha gasolina. Tentei não levar as questões muito a peito e respondi de forma educada. O tio fino ficou desapontado, provavelmente porque estava à espera que eu lhe dissesse que eu era um mártir tipo santinha alexandrina de balasar. Continuando, ele compra os cigarros e traz na mão um pack de cerveja. Pousa o carro ali perto da alfândega e sai do carro: desculpa lá, estava a precisar de libertar uns gases. Deprimente, penso. Diz: já viste o rio hoje? A minha única hipótese de sobrevivência era aquela garrafa de cerveja (cristal). Confiro com a mão, está fresca. Saco do canivete suíço e bato a porta do carro: o que é que tem? ele: Porra! Já estás a beber seu animal? É parvo, digo: era para guardar? O tio fino dá uma gargalhada: tu és um gajo esperto, meu burro. Lembrei-me da gata bílis, não sei porque carga de água e, pouco depois, relembrei os azulejos miseráveis da minha casa de banho. O tio fino estava entretido a cantarolar qualquer coisa como um fado de Coimbra e eu achei por bem deixá-lo estar. Foi aí que senti qualquer coisa muito perto da melancolia e, para contrariar, disse ao tio fino que já tinha pensado em ir para padre. O tio fino não acreditou. Eu disse que sempre gostei de saber basicamente tudo sobre a vida das pessoas, católicas e não só. O confessionário era também um sítio fixe para me esconder do meu primo quando brincássemos às escondidas. Logo a seguir, o tio começou a contar como tinha sido a primeira vez que tinha andado na roda gigante. As dúvidas relativas à minha potencial vocação dissiparam-se um pouco mais quando olhei para o relógio e vi que eram três e meia da manhã. Tinha dito apenas duas palavras. Foi bom. Gosto de ser o poço onde os outros deixam, muito ao de levezinho, cair os seus puzetes mentais.

2 comentários:

Anónimo disse...

devias postar mais regularmente, a sério que devias.

Polliejean

Joana disse...

Estou perplexa como é que nunca esbarrei com o teu blog. Muito obrigada pelo comentário que deixaste. À conta disso pude vir aqui e ler-te. Gostei muito do tom. Já disse 'obrigada Antunes?!'... Obrigada Antunes.