Nada ou o Antunes

‐ Caro Antunes, você é um procrastinador.
‐ Vou morrer?
O homem que está à minha frente é calvo e
bexiguento. Pergunta‐me:
‐ Você é parvo?
Pergunto eu:
‐ Vou morrer disso?
‐ Não Antunes, não vai morrer disso. Você é
diferente. Do tipo imortal.
Parvo. Esquece‐se, o burro, que se não fosse
a minha avó quem estava morto era ele. Era
cozinheira na casa de férias onde os
ascendentes do palerma atiravam balas a
perdizes, jogavam monopólio e coçavam o
rabo de oito em oito minutos. Quando era
puto, descobriu dentro de um saco de pão
uma coisa "paecida coum caamélo" disse, o
parolo; minutos depois estava roxo,
entupido com o anel de brasão do velhote.
Como forma de agradecimento, fez‐se de
porreiro. Mas de porreiro tem apenas
talvez apenas as botas que levava para a
neve. Digo:
‐ Isso são boas notícias.
A cara do médico está encorrilhada, parece
nata fresca. Diz:
‐ Não seja estúpido Antunes.
Sempre tive noção da minha estupidez, não
preciso que este badameco venha para aqui
enunciar verdades universais. Além do
mais, desconhece que ser estúpido pode dar
jeito quando fazemos xixi para uma valeta
ou quando passamos à frente um tipo no
supermercado “Coitado, é estúpido.”
Estúpido não, um esperto que se faz de
estúpido, que é diferente. Não vejo
nenhuma estupidez nisso. Mas adiante.
Viro‐me:
‐ Vai continuar a insultar‐me?
Reparo que enterra as pontas dos dedos no
espaço grotesco que são as suas narinas.
‐ Ouça uma coisa, você quer que o trate ou
não?
‐ Ainda não disse o que tenho.
‐ Quer saber?
Lembro: A última vez que o vi foi em 1992.
Tinha entrado numa espécie de greve
verbal, sendo que estava há mais de seis
dias sem dizer ou escrever o que quer fosse.
O motivo tinha sido uma aposta com o filho
do porteiro. Ele disse que eu não conseguia
estar calado, eu disse que sim. Ao fim de
pancada de meia‐noite, a minha mãe enfia-me
no carro. Disse: “Graças a Deus que o
Sôtor tem agora uma aberta”. Saco um
kleenex que o meu pai traz religiosamente
debaixo do banco do morto, escrevo: O
Sôtor é um asno. Aquilo foi como que acabar
a greve de forma gloriosa e triunfante, se é
que me faço entender. Hoje, reparo que
consegue estar ainda mais feio, parece que
lhe cresceu uma manta de pêlo nos braços,
aquilo está com um volume estupendo.
Penso no tapete do meu quarto de banho,
uma micro fibra plana e desbotada.
‐ Você é um procrastinador, quer que
repita?
É nojento. Os dedos continuam
praticamente estacionados nos buracos do
nariz. Pergunto:
‐ Um quê?
‐ É o seu verdadeiro problema. Tudo o
resto é uma consequência disso.
‐ Tem cura?
O tipo olha para mim como se eu fosse o
aleijadinho a quem os putos apontam o
dedo: “Ó mãe olha aquele”.
‐ Está flácido por dentro e por fora.
‐ Procrastinado e flácido.
Isto piora. Levanto‐me com as pernas a
tremer. Este palerma está a abusar.
‐ Acalme‐se Antunes.
Roda o monitor do computador para mim.
Aponta:
‐ Ora repare. Está aqui tudo.
Tenho o wikcionário à minha frente, vejo
mal ao perto, mas esforço‐me um pouco.
Consigo ler a definição para procrastinar:
1. empurrar com a barriga
2. deixar para o dia de amanhã
3. adiar
4. protelar
5. demorar
6. espaçar
7. deferir
8. usar de delongas
Usar de delongas? Acho a expressão curiosa
e penso como seria interessante debruçar-me
um pouco mais sobre a utilização das
palavras, mas a necessidade vital impõe‐se.
Percebo de imediato que é urgente deixar
para o dia de amanhã esta palhaçada.
Agarro dentro do bolso do casaco o pacote
de amêndoas que parece estar prestes a
rasgar. Atiro‐o para cima da mesa. Sinto‐me
cansado e agora uma nuvem de gases
invade a zona dois dedos abaixo da barriga.
‐ A Páscoa já foi, caro Antunes – diz o
médico.
‐ Eu sei padrinho. Mas resolvi procrastinar
consigo.

4 comentários:

Anónimo disse...

bem-vindo ao clube. eh eh.

bart disse...

muito bom!

bart disse...

morreu o Antunes?

António A. Antunes disse...

está de molho. não consegue vir à tona.