Cão

Não há dúvidas. A inércia é cúmplice da memória. Só isto pode explicar a quantidade de vezes que relembro a morte do meu cão, fez ontem dois anos e sete meses, numa operação aparentemente simples às duas vistas. Foi uma merda. Não gostei que o gajo tivesse ido desta para melhor. Ao mesmo tempo, trouxe-me alguma emoção. É. Se pensar bem, até foi fixe o meu cão ter batido as botas. Se não fosse pela chatice, comprava um cão em fase terminal só para poder voltar a sentir toda aquela adrenalina dos preparativos para o enterro, e isso. Foi um dia altamente. Enterrei o animal no quintal dos meus pais, debaixo do limoeiro. Podia ter optado por tê-lo simplesmente cremado ou algo assim, mas aproveitei para convidar o Daniel e o Furas para virem cá a casa e ajudarem-me com a abertura da cova. Abri umas cervejas e pus um chouriço a assar. Estava calor e a minha mãe tinha aproveitado para lavar os cortinados que estavam a secar ao fundo do quintal, numa espécie de estendal optimizado, que o meu pai montou ao longo de vários domingos e alguns feriados. Com o sol a bater de frente, não pude reparar como o raio dos cortinados eram feios, mas notei que o estendal parecia tombar para o lado direito. Depressa me concentrei na tarefa e comecei a cavar. O Daniel e o Furas são uns tipos que não se põem com merdas. Depois de abrir, metemos o bicho lá para dentro num instante. Quando tínhamos a terra toda posta por cima do cão, o Furas cuspiu para lá e disse: "Foi uma merda teres morrido. Mas caga nisso, cão". Depois continuamos nas minis e o Daniel começou a falar nas mamas da Sandra da papelaria.

Nada ou o Antunes

‐ Caro Antunes, você é um procrastinador.
‐ Vou morrer?
O homem que está à minha frente é calvo e
bexiguento. Pergunta‐me:
‐ Você é parvo?
Pergunto eu:
‐ Vou morrer disso?
‐ Não Antunes, não vai morrer disso. Você é
diferente. Do tipo imortal.
Parvo. Esquece‐se, o burro, que se não fosse
a minha avó quem estava morto era ele. Era
cozinheira na casa de férias onde os
ascendentes do palerma atiravam balas a
perdizes, jogavam monopólio e coçavam o
rabo de oito em oito minutos. Quando era
puto, descobriu dentro de um saco de pão
uma coisa "paecida coum caamélo" disse, o
parolo; minutos depois estava roxo,
entupido com o anel de brasão do velhote.
Como forma de agradecimento, fez‐se de
porreiro. Mas de porreiro tem apenas
talvez apenas as botas que levava para a
neve. Digo:
‐ Isso são boas notícias.
A cara do médico está encorrilhada, parece
nata fresca. Diz:
‐ Não seja estúpido Antunes.
Sempre tive noção da minha estupidez, não
preciso que este badameco venha para aqui
enunciar verdades universais. Além do
mais, desconhece que ser estúpido pode dar
jeito quando fazemos xixi para uma valeta
ou quando passamos à frente um tipo no
supermercado “Coitado, é estúpido.”
Estúpido não, um esperto que se faz de
estúpido, que é diferente. Não vejo
nenhuma estupidez nisso. Mas adiante.
Viro‐me:
‐ Vai continuar a insultar‐me?
Reparo que enterra as pontas dos dedos no
espaço grotesco que são as suas narinas.
‐ Ouça uma coisa, você quer que o trate ou
não?
‐ Ainda não disse o que tenho.
‐ Quer saber?
Lembro: A última vez que o vi foi em 1992.
Tinha entrado numa espécie de greve
verbal, sendo que estava há mais de seis
dias sem dizer ou escrever o que quer fosse.
O motivo tinha sido uma aposta com o filho
do porteiro. Ele disse que eu não conseguia
estar calado, eu disse que sim. Ao fim de
pancada de meia‐noite, a minha mãe enfia-me
no carro. Disse: “Graças a Deus que o
Sôtor tem agora uma aberta”. Saco um
kleenex que o meu pai traz religiosamente
debaixo do banco do morto, escrevo: O
Sôtor é um asno. Aquilo foi como que acabar
a greve de forma gloriosa e triunfante, se é
que me faço entender. Hoje, reparo que
consegue estar ainda mais feio, parece que
lhe cresceu uma manta de pêlo nos braços,
aquilo está com um volume estupendo.
Penso no tapete do meu quarto de banho,
uma micro fibra plana e desbotada.
‐ Você é um procrastinador, quer que
repita?
É nojento. Os dedos continuam
praticamente estacionados nos buracos do
nariz. Pergunto:
‐ Um quê?
‐ É o seu verdadeiro problema. Tudo o
resto é uma consequência disso.
‐ Tem cura?
O tipo olha para mim como se eu fosse o
aleijadinho a quem os putos apontam o
dedo: “Ó mãe olha aquele”.
‐ Está flácido por dentro e por fora.
‐ Procrastinado e flácido.
Isto piora. Levanto‐me com as pernas a
tremer. Este palerma está a abusar.
‐ Acalme‐se Antunes.
Roda o monitor do computador para mim.
Aponta:
‐ Ora repare. Está aqui tudo.
Tenho o wikcionário à minha frente, vejo
mal ao perto, mas esforço‐me um pouco.
Consigo ler a definição para procrastinar:
1. empurrar com a barriga
2. deixar para o dia de amanhã
3. adiar
4. protelar
5. demorar
6. espaçar
7. deferir
8. usar de delongas
Usar de delongas? Acho a expressão curiosa
e penso como seria interessante debruçar-me
um pouco mais sobre a utilização das
palavras, mas a necessidade vital impõe‐se.
Percebo de imediato que é urgente deixar
para o dia de amanhã esta palhaçada.
Agarro dentro do bolso do casaco o pacote
de amêndoas que parece estar prestes a
rasgar. Atiro‐o para cima da mesa. Sinto‐me
cansado e agora uma nuvem de gases
invade a zona dois dedos abaixo da barriga.
‐ A Páscoa já foi, caro Antunes – diz o
médico.
‐ Eu sei padrinho. Mas resolvi procrastinar
consigo.

As coisas arrumadas

Não gosto de arrumadores. Fico enjoado só de olhar para aqueles farrapos, com sebo até aos olhos e irresolúveis problemas do foro oral. Não gosto, pronto. Estou no meu direito. Outro dia, tropecei numa coisa dessas. Ou melhor, uma coisa dessas tropeçou em mim, estava eu a escassos metros do meu veículo. Senti um cheio nauseabundo, uma mistura de mofo e humidade, qualquer coisa de indescritível que emanava da espécie de manta rota que trazia pelos ombros. Disse ele:
- Uma moedinha.
Nunca trago moedas no bolso, mas tinha pago a raspadinha com vinte euros e o tipo do quiosque: "Vai ter de ser assim, que a minha filha levou-me o trocado".
- Desaparece.
O fóssil estende a mão. É uma mão magra e enrugada. Parece a mão do meu tio avô Alberto.
- É para beber um copo de leite.
Não tem vergonha. São dez da noite e estamos numa zona despida da cidade. O máximo que pode encontrar são vestígios de fezes caninas pelos passeios e meia dúzia de carros abandonados. Para beber leitinho, tinha de andar pelo menos sete minutos a pé até ao café central que entretanto fecha porque já são dez e meia e tudo o que aconteceu nesse dia foi servir três cafés e quatro bagaços.
- Leite faz mal.
O tipo reage. Noto pregas a formarem-se em volta dos olhos e o maxilar encovado salienta a boca fina e branca que parece tremer desalinhada.
Não comeces a chorar palerma. Agora não. Continuo:
- Tenho de ir.
Penso nas gavetas organizadas da prima Lurdes, tudo identificado por cores, tamanhos, letras, tipo. Depois, consigo ver ao fundo da rua um contentor gigante amarelo que leva tudo o que não presta. A minha cidade está arrumada. Assim como mundo. O senhor que gere o espaço para aparcamento de viaturas já não está ali.