3,401,905

Vi a mãe da Raquel Pereira duas vezes. Uma vez no cabeleireiro onde costuma fazer a mise, a outra em sua casa onde vive com Raquel Pereira, sua filha única, e onde as memórias do marido infiel permanecem propositadamente espalmadas entre as capas de um bonito álbum de fotografias. Tudo o que posso dizer sobre a mãe da Raquel Pereira é passível de ser resumido nesta palavra: parva. É também uma forma de vos poupar algum tempo e acabarem rápido com esta inútil leitura. Indo à questão fundamental:

Eu estou sozinho com a Raquel Pereira, no seu quarto decorado a papel de parede cor-de-rosa quando ela me estende o copo e diz: Dou-te cinquenta paus se beberes isto. Eu acho justo; cinquenta paus naquela altura era muito dinheiro. O copo está cheio de vodka mas, assim a olho nu, as semelhanças com água do fastio, por exemplo, são bastante evidentes.
A Raquel Pereira tem a pele branca; gosto analisar com atenção as sardas que circundam o seu nariz. Naquele momento estou concentrado nos seus brincos - são dois papagaios amarelos. Diz: É água. Vejo caganitas metálicas estacionadas nos seus dentes; um sorriso mais bonito, é só uma pequena correcção, o pai que a convenceu; o único a quem obedece, à mãe só lhe falta bater. Um segundo após a tonight, tonight dos Smashing Pumpkins dentro do morango gigante que é aquele quarto, a Raquel Pereira pega no meu braço e não sei porquê mas aquele aparelho não lhe ficava mal, aliás, até achava aquilo sexy. Moderno talvez seja a palavra correcta, eu achava o aparelho da Raquel Pereira moderno e isso tornava-a, naturalmente, apetecível.
No meu tempo, nada de youtubes, fui agora ver, curiosidade porque falo disto, para tonight, tonight: Views: 3,401,905.
Continuando, ela pega em mim e abraça-me; encosta o lado direito da sua cara ao lado direito da minha cara e tem a boca perto do meu ouvido. Nesta altura sinto que sou estúpido, não por alguma razão em especial, mas só pelo simples facto de não ser possível alguém não se sentir estúpido, afinal de contas. Ela cheira a cereja, não sei se do quarto, se de algum perfume. O que posso precisar é que o cheiro é forte e já está dentro da minha boca. É aí quando ela se afasta, pega no copo. Não diz nada. Eu também prefiro estar calado. Bebo aquilo depressa. Depressa, depressa, afinal não é água. Cinco foram os minutos que permaneci de pé, uma estimativa. Pouco depois a Raquel Pereira está deitada ao meu lado na sua cama, uma colcha com pequenas flores; diz-me ao ouvido coisas que nunca fui capaz relembrar.


Para a Ana, "pequena-grande" leitora, que não gosta de ler em ecrãs de computador. E com razão.

1 comentário:

Francisco disse...

A forma como entrelaças as histórias é fantástica.

A.A.Antunes em livro.